terça-feira, 10 de março de 2009

Frio

...Hoje o dia está frio. Sento na frente desta tela, e como minha amiga Gisele, observo as mãos sobre o teclado. Fico num estado de quem não tem nada o que fazer, mesmo tendo a remota lembrança de que todas as coisas a fazer não cabem nem nas mãos nem no dia. Dou este tempo para mim. Escrever o que jamais foi escrito, embora tudo já tenha sido escrito, por mim ou por outros. Atravessa-me, de forma surreal, este sentimento de repetição, de circulo.
...Penso e repenso nos conteúdos todavia inexistentes destas linhas. Pareço não entrar no meu próprio estilo de espancar as teclas. Porque, afinal, em dias frios e tristes, toda a escrita é uma forma de violência. Em dias quentes também, mas hoje está frio. Uma violência contra as teclas, contra os espaços em branco, contra as lacunas da mente, contra a desvontade. Escrever é uma violência de mudança... Toda palavra trás um movimento, e o movimento é violento.
...Olho em volta... Nada mais que fotos e resquícios de uma existência comum. Uma forma de ver o mundo. Forma de ver as fotos, as lembranças renunciadas ao meio material.
...Sinto comichar a alma quando leio aquela frase do Quintana, “e imaginação é a memória que enlouqueceu”. As purezas da loucura não simplesmente expõem o novo, mas torna-o novo. Assim, quando lembramos de algo, já não vivemos tanto quanto fizemos poesias de nossas vidas. A realidade mentida é a realidade evidente, pois a verdade e a realidade se divorciaram no dia em que o macaco viu o sol e fechou os olhos, apenas imaginando a percepção de uma bola de fogo!
Hoje o dia está frio. A noite, por surpresa, está escura e assim permanecerá até a aurora. Chove e choveu... Dizem que há pelo menos vinte anos não chovia tanto nesta cidade. Parece que a chuva espalhou-se por entre as camas dos amantes adormecidos, inundou o escritório de um monótono advogado, substituiu as telhas das casas pouco apreciadas, levou a sujeira de uma rua para a outra e outra e outra. A chuva deslizou até agorinha. E veio o frio, seu fiel sucessor. El frio llegó, amenazó el día, apertó los cuellos, agaró las manos. O frio congelou, tiranicamente, os corações e instaurou a poesia.
...Bruno desceu a escada escondendo-se na manta preta que entrava na abertura da jaqueta, também preta. Desceu lentamente a escada. O frio o deixava extremamente desconfortável na tentativa dos mais simples movimento. O cabelo comprido que brincava com o vento, parecia brotar por debaixo de uma toca de lã preta, que escondia a testa e uma das sobrancelhas. Os olhos, negros, fechavam-se com o vento cortante, mas não perdiam o brilho. Seu olhar de guri novo, alegre e simpático, escondia a maturidade de um poeta em extinção. As mãos perdiam-se no infinito descolorido da jaqueta. Podia fumar um cigarro naquele momento, o cigarro que segurava em uma das mãos embolsadas, mas esperaria chegar em algum lugar onde o vento não fosse tão cruel. Passo a passo, parecendo segurar uma bola na ponta de cada uma das botas, movendo-se, então, com cuidado para que não caíssem rolando escada a baixo. Chegou, por fim, ao último degrau e assim aos paralelepípedos que guardavam alguns carros. Parou. Um pouco ao lado, escorou-se na parede, o vento já estava mais amigo. Tirou o cigarro do bolso. Acendeu. Deixou as brasas em chamas. Suspirou!

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Escrito em algum lugar de Passo Fundo, há algum tempo atrás...

hasta